terça-feira, 7 de setembro de 2010

O PARTIDO DO POLVO

Quando a máquina pública passa a ser controlada por pessoas ligadas umbilicalmente a um partido político, e este, a sindicatos, acaba de ser criado um poder independente no país.

Nesse poder, os ditames do corporativismo, das inclinações políticas e dos interesses comuns da burocracia oficial valem mais do que as leis. Seus integrantes estão sempre de acordo sobre as grandes questões políticas e obedecem cegamente a um líder carismático.

Eles se comunicam remotamente e coordenam suas ações como que orientados por feromônios, de modo que mesmo sem trocar palavras sabem, caso a caso. o que é do interesse maior do grupo e agem de acordo com ele.

Em seu estágio final, essa hierarquia paralela se organiza como uma sociedade secreta e resiste até mesmo à alternância do poder político. As quinze linhas acima definem um quadro ruinoso que já se abateu antes sobre muitos países, moendo as engrenagens de funcionamento da democracia e resultando no assalto final ao estado por um grupo hegemônico.

O Brasil está mais vulnerável agora a um descaminho semelhante do que estava pouco mais de sete anos atrás, quando Lula e seu partido assumiram o poder.

O processo de colocação de "gente nossa" em postos-chave aos quais já se chega sabendo a quem se deve fidelidade é chamado de aparelhamento do estado.

Como disse a Carta ao Leitor de VEJA desta edição, esse processo teve enorme impulso nos últimos anos e é "desde já o mais ruinoso legado da era Lula". Essa triste realidade veio à tona com violência na semana passada com a revelação da criminosa quebra do sigilo fiscal de Verônica Serra, filha de José Serra, candidato da oposição ao cargo de presidente da República nas próximas eleições. Para tentar abafar o crime, cujos autores e circunstâncias ainda estão longe de ser totalmente esclarecidos. falou-se por ferormônio na máquina estatal.

A Receita Federal, o Ministério da Fazenda, a Polícia Federal e até o gabinete da Presidência da República atuaram de forma coordenada no episódio _ nunca no sentido de revelar suas reais facetas, mas com a intenção de evitar que o caso se tome munição eleitoral contra a candidata governista, Dilma Rousseff.

VEJA se propôs a quantificar a extensão do avanço do aparelhamento partidário e corporativo sobre a administração pública federal. Desde 2003, quando Lula chegou ao poder, seus seguidores aceleraram uma operação de conquista de postos-chave do estado que, aliás, já vinha sendo disciplinadamente seguida em governos anteriores sem que se soassem alarmes. Dos quarenta cargos mais cobiçados do governo, os partidários de Lula e filiados ao PT ocupam 22. Nesses postos eles controlam orçamentos anuais que, somados, chegam a 870 bilhões de reais. Isso representa um quarto do produto interno bruto brasileiro. Ou seja, que 25% da riqueza nacional está sob administração direta de quadros partidários e ligados a sindicatos e centrais sindicais, todos comprometidos com um programa duradouro de poder.

O livro A Elite Dirigente do Governo Lula, da cientista política Maria Celina D" Araujo, publicado em janeiro deste ano, traça um quadro acadêmico da presente situação.

Diz ela: "Mesmo que, com a eleição de Lula, fosse de esperar que os sindicatos ficassem mais perto do governo e do estado, esses dados chamam atenção. Num país conservador como o Brasil, a presença tão significativa de profissionais sindicalizados nas altas esferas do governo parece destoante". Maria Celina observa também que os funcionários públicos guindados pelo PT têm, na média, boa formação escolar e seriam pessoas certas no lugar certo não fosse sua devoção a uma causa partidária. Conclui Maria Celina: "O setor público brasileiro pode facilmente ser capturado por interesses organizados".

Com o preenchimento dos 1.219 cargos especiais de "direção e assessoramento superior", as famosas DAS 5 e 6, os governos formam o que se poderia chamar de "núcleo duro" da administração. Antes de Lula e do PT, esses cargos eram ocupados em parte por indicação política, já que a maioria dos postos era reservada para especialistas de reconhecido conhecimento técnico.

No governo de Lula, 45% desses cargos foram entregues a sindicalistas, sendo que, entre eles, 82% são filiados ao PT. Para garantir o controle sobre a distribuição de cargos de confiança, o Palácio do Planalto concentrou na Casa Civil o poder de aprovar todas as nomeações no Executivo e deu aos petistas a absoluta maioria dos ministérios - em número desproporcional à sua representação no Congresso.

Tratar o estado como se fosse o partido é uma liberalidade a que poucos governantes se entregam tão alegremente quanto Lula o fez nos mais de sete anos de governo. A noção de serviço público foi substituída nos escalões superiores da burocracia federal pela fidelidade ao projeto de poder do presidente e de seu partido.

Os servidores passaram a agir como funcionários camuflados: apesar de oficialmente desempenharem tarefas públicas e terem remuneração paga pelo estado (ou seja, por todos os contribuintes), dedicam-se a cumprir objetivos táticos e estratégicos definidos pelos líderes de sua sigla. Essa lógica foi aos poucos escorregando pelas engrenagens da máquina pública até atingir os escalões intermediários.

Um cruzamento de dados realizado por VEJA mostrou que 6.045 servidores federais de alto nível se filiaram ao PT desde o início do governo Lula. Sete em cada dez desses conveniados tiveram sua carreira turbinada e, em pouco tempo, foram elevados a postos de chefia ou receberam alguma espécie de promoção. A filiação ao partido, e não a qualificação técnica, foi o dado essencial para a promoção desses funcionários? Sempre se poderá dizer que não é bem assim, pois se tratava de gente da melhor qualidade. Mas a realidade mostra que em nenhum outro grupo o acesso a postos de chefia foi tão célere. "Quando Lula deu fim à diversidade de afiliações políticas que era respeitada nos outros governos democráticos, ele não apenas eliminou do serviço público uma vacina contra a intolerância e a radicalização política como também comprometeu a vigilância da própria máquina.

As instituições do estado passaram a ser subservientes aos interesses do governo do PT _ e não do restante da população", diz Maria Celina D" Araujo. A Constituição Federal garante a qualquer pessoa _ seja ela funcionária pública ou não _ o direito de se filiar ao partido político que bem entender. O que a democracia não tolera, no entanto, é o apoio ao governo de plantão motivado exclusivamente pela carteirinha partidária.

O cientista político Pedro José Floriano Ribeiro, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), estudou durante oito anos as mudanças na base social do PT e em seu programas. Ele diz que a sigla pode hoje se encaixar na definição de partido cartel: retira cada vez mais do estado recursos vitais à sua sobrevivência. Segundo ele, a forma de convencimento de entrada no partido é hierárquica, vindo dos altos dirigentes, deputados, ministros e prefeitos, até chegar às lideranças locais, especialmente diretórios municipais e vereadores. "No caso petista, os vínculos de dependência entre dirigentes e funcionários das instâncias são fortalecidos por um sistema de recrutamento altamente pessonalizado, que funciona na base do "apadrinhamento" ou do "compadrio": lideranças indicam parentes, amigos e correligionários para os cargos na máquina", explica. "Como não existem tantos cargos de confiança, são os funcionários de carreira que passam a ser atrativos. É importante que eles também se filiem ao partido que coordena aquela área do governo", conclui o professor.

"É óbvio que está se aprofundando um forte elo entre partido e burocracia estatal. O mundo passa a ser visto a partir dos valores do partido e dessa burocracia. E a máquina pública passa a se mover segundo essa visão partidarizada", explica o filósofo José Arhur Giannotti. Para quem estuda política internacional, a voracidade por cargos do PT não é um caso único. Um exemplo considerado paradigmático pela ciência política é a experiência do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) entre os anos 80 e 90. O partido chegou a ter 25.000 pessoas em cargos de confiança no governo do primeiro-ministro Felipe González. A ineficiência da máquina pública espanhola chegou ao paroxismo, as contas públicas degringolaram e os casos de corrupção estatal se multiplicaram.

Na Rússia comandada por Vladimir Putin e na Venezuela do coronel Hugo Chávez, os governos também são dominados por funcionários umbilicalmente ligados ao regime.

O problema é que nenhum país do mundo avançou sem uma burocracia de qualidade. No Brasil, há uma dicotomia, já que existem carreiras fortes e eficientes, especialmente na área econômica (como as ligadas ao Banco Central ou ao Tesouro Nacional), e áreas bastante rudimentares (como a Receita Federal, onde, segundo o próprio corregedor-geral do órgão, se instalou um "balcão de negócio" para compra e venda de dados sigilosos dos contribuintes).

Onde faltam carreiras estruturadas e com promoções definidas pelo mérito, a possibilidade de ingerência política é ainda maior. Por exemplo: somente no organograma da Fundação Nacional de Saúde, que tem a missão crucial de gerenciar os recursos destinados a ações de saneamento básico, há 1.500 petistas incrustados.

O que será que todos eles querem lá? Quando esse quadro de aparelhamento começa a ser dominante no serviço público, como acontece no Brasil do PT, o estado passa a servir apenas ao partido do polvo, e não ao povo.

Fernando Mello - Veja

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